O chamado “jeitinho brasileiro” é, em sua essência, um reflexo da complexidade ética e moral de nossa sociedade. É uma prática que pode tanto expressar a criatividade e a resiliência de um povo quanto escancarar sua permissividade com atos que tangenciam ou adentram o campo da ilegalidade. Essa dualidade nos coloca diante de questões filosóficas profundas: o que significa ser ético em um ambiente onde a norma muitas vezes é contornada em nome da conveniência?
Não é necessário observar a esfera política para encontrar exemplos de ilegalidade predatória. Episódios cotidianos revelam o quanto o indivíduo, imerso na coletividade, é capaz de se afastar da virtude e se alinhar àquilo que Aristóteles chamaria de adikia – a injustiça. Um exemplo gritante ocorre quando, diante de um acidente envolvendo um veículo de grande porte, a carga deste é imediatamente subtraída por transeuntes. Não se trata de mera solidariedade ou ajuda em tempos difíceis, mas de um ato deliberado de rapinagem, mascarado pela ideia de que bens materiais, por estarem “expostos”, tornam-se disponíveis.
A Reflexão Jurídica e Moral
As leis brasileiras são claras ao classificar tais atos como crimes. O furto simples (Art. 155 do Código Penal) abarca o ato de subtrair bens alheios, com pena prevista de reclusão de 1 a 4 anos e multa. A ideia de que a carga estaria “abandonada” é refutada pela lógica jurídica: aquilo que pertence a outrem, mesmo em situação de vulnerabilidade, não perde sua propriedade.
O furto qualificado (Art. 155, § 4º) agrava-se quando há destruição de obstáculos, ação coletiva ou aproveitamento de calamidade, elevando a pena para até 8 anos. A conduta coletiva, aqui, revela o caráter mais profundo da responsabilidade moral partilhada: quando o indivíduo age em conjunto, sua culpa não se dissolve no grupo, mas se intensifica pela cumplicidade.
A apropriação indébita (Art. 168) ocorre quando o sujeito decide reter aquilo que encontrou e deliberadamente ignora o dever de restituir. O filósofo Kant, ao falar da ética universal, enfatizaria que a lei moral exige que cada ato seja julgado como se fosse universal. Quem justificaria, então, o furto da carga de um caminhão como prática aceitável se todos agissem da mesma forma?
A Ética do Desrespeito e a Sociedade do Espetáculo
Mais perturbador do que o furto da carga, no entanto, é a atitude de indiferença e desumanização que acompanha esses eventos. O indivíduo que sofre o acidente não apenas se torna vítima de roubo, mas é exposto ao constrangimento público por parte daqueles que registram selfies com a tragédia. Esse comportamento traduz a lógica da “sociedade do espetáculo” descrita por Guy Debord: a banalização do sofrimento alheio transformado em entretenimento.
A invasão de supermercados sob o pretexto de fome, por mais que revele fragilidades sociais, não encontra justificativa moral na destruição do bem comum. Da mesma forma, as invasões de terras improdutivas – que nunca se convertem em espaços de produção viável – são frequentemente conduzidas por interesses que não visam a justiça, mas sim o caos. Não há, nesses atos, a busca pela justiça distributiva proposta por Rawls, mas um desvirtuamento dos conceitos de igualdade e solidariedade.
Uma Reflexão Filosófica sobre o Estado da Moralidade
Essas práticas apontam para um estado de decadência moral coletiva. Se, como afirmou Rousseau, o contrato social é a base da convivência humana, então, o rompimento desse contrato por meio de atos ilícitos – por menores que pareçam – destrói a própria ideia de civilização. É como se, ao justificar pequenos desvios, criássemos um ciclo de permissividade que, ao final, engole qualquer noção de ética pública ou privada.
A verdadeira questão, portanto, não é apenas o que fazemos enquanto indivíduos, mas o que permitimos enquanto sociedade. Quando o mal é normalizado – seja no furto de uma carga, na invasão de um espaço, ou na exposição da miséria alheia como entretenimento – a coletividade perde sua capacidade de discernir entre o justo e o injusto, o ético e o corrupto.
Uma Jornada de Retorno à Virtude
O Brasil, com toda sua riqueza cultural e humana, precisa urgentemente revisitar sua relação com a ética. Não se trata apenas de aplicar a lei, mas de resgatar os valores que sustentam uma convivência harmoniosa e justa. Só assim poderemos superar a lógica predatória que permeia tantos aspectos de nossa sociedade e caminhar em direção a um ideal que valorize não o “jeitinho”, mas a justiça, a solidariedade e o respeito mútuo.
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